Prefácio

Por décadas, nos Estados Unidos, foi Deus no céu, e a Big Blue na terra.

Embora tenha sido formalmente criada em 1911, as origens da IBM remontam às últimas décadas do século XIX, especificamente a quatro inventores e suas empresas: Julius E. Pitrap, Alexander Dey, Willard Bundy e Herman Hollerith.

Dos quatro, Hollerith talvez tenha sido o que patenteou o invento mais interessante, a Máquina Elétrica de Tabulação, um aparato eletromecânico que utilizava solenoides para avançar discos mecânicos que, assim, acumulavam números, utilizada no censo norte-americano de 1890.

Imagens da patente original da Máquina Elétrica de Tabulação de Hollerith, de 1886.

O circuito elétrico que acionava cada solenoide era fechado quando fios atravessavam furos em cartões perfurados e alcançavam ampolas preenchidas com mercúrio, localizadas logo abaixo de suas posições.

Os agentes responsáveis por visitar as residências coletavam os dados demográficos em fichas cujas informações tabuladas eram posteriormente transferidas para cartões não condutores, que eram perfurados por funcionários nos escritórios do censo, com o auxílio de pantógrafos, como o da imagem abaixo.

Funcionário do Museu do Escritório do Censo dos Estados Unidos demonstrando o uso de um pantógrafo.

Os cartões perfurados eram, então, alimentados nas máquinas de tabulação, para que os números fossem totalizados.

Em 1911, Charles Ranlett Flint reuniu as quatro empresas para formar uma quinta, chamada Computing-Tabulating-Recording Company (CTR), rebatizada International Business Machines (IBM).

Durante décadas, as máquinas de tabulação da CTR e da IBM foram utilizadas por grandes empresas e governos, inclusive o Terceiro Reich, que utilizou máquinas IBM, vendidas por intermédio de uma subsidiária, para o rastreamento de judeus e outros grupos perseguidos pelos nazistas.

A IBM foi, e continua sendo, uma das grandes responsáveis pelo desenvolvimento da computação, da robótica, da cibernética, da engenharia de software, do processamento de dados, da inteligência artificial, da nanotecnologia, entre outros. Inclusive máquinas para o fatiamento de frios.

Nos anos 60, computadores IBM foram empregados pela NASA no programa Mercury. Até o final dos anos 70, a empresa se concentrava em computadores de grande porte e mainframes, que eram o estado da técnica no período.

Computador IBM 7090, utilizado pela NASA, retratado no filme Estrelas além do tempo (Hidden Figures), de 2016.

Com o advento do microcomputador, na metade dos anos 70, e com o sucesso de vendas do Apple II, da empresa de mesmo nome, especialmente após o lançamento do VisiCalc, primeira planilha eletrônica, em 1979, a IBM se deu conta de que perderia o bonde da história se não entrasse nesse mercado. Milhares de pessoas estavam comprando e gostando dos pequenos computadores de topo de mesa, até mesmo seus engenheiros os estavam utilizando, em detrimento dos próprios mainframes.

IBM PC

A IBM é a maior empresa de informática do mundo, além de ser, individualmente, a recordista em patentes registradas nos Estados Unidos e, até os anos 70, era uma empresa tipicamente fordista, verticalizada e com uma forte burocracia, que envolvia vários comitês que reviam as tomadas de decisão, o que acabava atravancando o processo. Era corrente, na empresa, que levava-se nove meses para que uma caixa vazia fosse movida de um lugar para outro.

Sendo assim, enquanto os diretores da IBM se reuniam para discutir a crise provocada pelos computadores pessoais, era consenso que, a se seguir os procedimentos usuais da empresa, seriam necessários quatro anos e trezentas pessoas para que seu microcomputador chegasse ao mercado. Neste ponto, a indústria teria crescido demais para que conseguissem tomá-la de assalto.

Neste ponto, Bill Lowe, um engenheiro a cargo de um pequeno laboratório na Flórida, em Boca Raton, assegurou que seria possível lançar o microcomputador da IBM em um ano se ele tivesse carta branca para subverter a metodologia de trabalho da empresa.

Assim, contra todas as previsões, Lowe introduziu a produção flexibilizada na IBM ou, como ela denominou, arquitetura aberta: em vez de criarem um computador do zero, os componentes seriam comprados de outros fabricantes e eles apenas os montariam. O micro assim criado não teria tecnologia da IBM, softwares da IBM, vendedores da IBM ou assistência da IBM.

Foi um sucesso. Em agosto de 1981, o IBM PC (Computador Pessoal da IBM) foi lançado no mercado, atingindo a absurda marca de 2.000.000 de unidades vendidas em três anos.

IBM PC, 1982.

Deus no céu e IBM na Terra, lembra?

Mas qualquer fabricante poderia fazer a mesma coisa que a IBM havia feito, bastava comprar um microprocessador da Intel e os demais componentes de outros fabricantes e ali estaria um clone do IBM PC.

Para evitar que isso acontecesse, no entanto, um componente absolutamente essencial para o funcionamento do computador, e sem o qual ele seria nada mais que uma pilha de lixo eletrônico, foi criado e patenteado pela IBM, garantindo-lhe o direito de exclusiva. Trata-se do ROM-BIOS (Read-Only Memory – Basic Input Output System), a BIOS de um computador, armazenada em um chip ROM.

Os chips do tipo ROM são chips que não podem ser sobrescritos, servindo apenas para leitura. Seu conteúdo é inserido no último estágio de fabricação e não pode ser alterado.

A BIOS, por sua vez, é o um conjunto de instruções de firmware responsável pelo arranque do computador. Ao ser energizada, a BIOS dispara os drives iniciais de suporte básico aos componentes de hardware do computador, realiza um diagnóstico e prepara a máquina para receber o sistema operacional, por exemplo: inicializando a memória RAM e os elementos PCI. Ao carregar o sistema operacional, a BIOS passa o controle para ele.

Protegidos pela patente, a IBM esperava manter-se soberana por algum tempo mas, em apenas 15 meses, o primeiro clone de seu microcomputador chegou ao mercado. Após um exaustivo trabalho de engenharia reversa, ao custo de um milhão de dólares, o COMPAC, computador 100% compatível com o IBM PC, e um tanto mais barato, foi apresentado ao mundo em novembro de 1982.

COMPAC, 1982.

E, uma vez aberta a porteira…

Não é que a IBM tenha sido pega de surpresa, sua experiência com mainframes já tinha demonstrado que, com o tempo, similares e clones eventualmente aparecem, mas ela supôs que seu nome e seu tamanho seriam suficientes para manter-se na crista da onda.

Não foi o que aconteceu.

Os famosos processos lentos que a caracterizam e o alto custo de sua estrutura a colocaram em franca desvantagem em relação aos ágeis e enxutos fabricantes de clones. Assim, no final dos anos 80, a IBM decidiu mudar o curso radicalmente e lançar um microcomputador totalmente proprietário e com sistema operacional próprio.

É claro que não poderia dar certo. Como comparar um ecossistema de arquitetura aberta, com ampla competição e crescente inovação, com uma oferta enorme de computadores absolutamente interoperáveis, rodando o mesmo sistema operacional e os mesmos milhares de programas, com uma solução fechada, monopolista, com desenvolvimento lento e baixa oferta de programas? E nem interessa que o OS/2, o sistema operacional totalmente desenvolvido in house para essa nova linha de computadores, fosse muito, mas muito melhor que o MS-DOS ou o Windows. Isso não fazia a menor diferença. Fosse assim e o GNU Linux, infinitamente superior ao Windows, já teria virado a mesa no mercado de desktops, o único em que ainda não é o dominante.

Não funcionou. Após criar o paradigma da arquitetura aberta, introduzir o microcomputador no mundo empresarial em larga escala, e mesmo ter o nome de seu produto associado à toda uma fatia do mundo da Informática, os PCs, após perder sucessiva e irreversivelmente seu espaço no mercado, a IBM capitulou e voltou a fabricar apenas mainframes.

Hoje, a IBM possui um grande portfólio de serviços e produtos, incluindo computação em nuvem, inteligência artificial, análise de dados, Internet das Coisas, infraestruturas de Informática e ambientes de trabalho digitais, computação móvel e cibersegurança. Ela ainda produz mainframes, servidores e supercomputadores, microchips e microprocessadores e anunciou a construção de um computador quântico para 2020, na Alemanha, projeto que deve ter sido adiado pela pandemia.

A IBM segue, portanto, sendo uma grande empresa.

Mas… e a tal abertura do código?

Interlúdio

Grande parte, talvez a maior parte, da receita da IBM ao longo dos anos, a partir dos anos 90 principalmente, migrou do comércio de hardware para a prestação de serviços. Assim como empresas como Accenture e Deloitte, a IBM cria projetos inteiros de infraestrutura computacional para empresas de qualquer porte que, obviamente, possuam orçamento suficiente para arcar com seus preços.

Historicamente, no que tange ao software, o modelo de negócio da IBM sempre foi da comercialização da licença de uso de programas proprietários.

O crescimento do ecossistema do software livre, caracterizado pela programação aberta como método e a licença não restritiva como fundamento, e a prova empírica de seu sucesso no desenvolvimento de programas mais eficientes, leves, estáveis, com curva de desenvolvimento acentuada a um custo de produção muito inferior ao dos programas proprietários, como provou a experiência Netscape/Mozilla, e como provava também a relação Red Hat/Fedora, fez com que a IBM começasse a flertar com as licenças de código aberto próximo à virada do milênio.

De fato, contrariando os paradigmas computacionais canônicos, a receita total da IBM com software, a medida em que ela migrava do modelo de alienação do licenciamento para prestação de serviços associados a programas com licenças livres, como se repara no gráfico a seguir, só fez crescer nos anos seguintes.

Epílogo

É importante destacar que, contrariamente ao que supõe o senso comum, a receita advinda da alienação de licenças corresponde apenas a um terço da receita total do mercado de software. O restante, aproximadamente dois terços, é obtida de serviços relativos aos programas.

A adoção de programas livres promove a redução de custo de desenvolvimento em razão do crowdsourcing. É necessário, no entanto, que as sociedades empresárias mudem sua cultura empresarial e percebam as vantagens de se abrir a licença de sua propriedade intelectual ao grande público, mesmo sabendo que outros programas poderão surgir se aproveitando dessa inteligência, mas que sua receita, no final das contas, vai aumentar com a adoção de modelos de negócio diferentes, alicerçados na prestação de serviços.

Desde 1998, a IBM contribui com o desenvolvimento do kernel Linux, sendo a empresa privada responsável pelos maiores investimentos, tanto em doações para a fundação, quanto em homens/hora de programação, movimento que culminou, mas não se encerra, na aquisição da Red Hat em 2019.

Em um mundo em que a competitividade achata as margens de lucro – nada contra – e força as empresas a buscarem impossíveis reduções de seus custos operacionais, a adoção de soluções abertas, tanto de software quanto de hardware, parecem cada vez mais atraentes.

Steve Jobs, em seus tempos fora da Apple, de 1985 a 1997, precisava de um sistema operacional para os computadores de sua recém criada Next. Nada melhor que partir de um sistema operacional que já fosse maduro o suficiente e que, de preferência, lhe custasse pouco para adquirir sua licença de uso ou, ainda melhor, se não lhe custasse nada. E ele descobriu essa solução no sistema FreeBSD, um kernel livre que, assim como o Linux, é baseado no Unix.

Por cima do kernel FreeBSD, Jobs desenvolveu o sistema operacional NextStep que, posteriormente, se transformaria no Mac OS, quando ele finalmente retornou à Apple em 1997.

Até hoje o Mac OS segue funcionando sobre uma das derivações do kernel FreeBSD, para o qual a Apple contribui ativamente, se beneficiando da força do desenvolvimento aberto das comunidades de programas livres.

A Micrososft, por outro lado, nunca mudou seu modelo de negócios e, a despeito de sua dominância global do universo desktop, que possui razões históricas remontando ao sistema operacional licenciado para o IBM PC em 1980, não consegue entregar um produto com uma qualidade que se aproxime àquela do Linux e do Mac OS.

Seus movimentos de aproximação da Fundação Linux e da Canoncial, desenvolvedora da distribuição Ubuntu Linux, a paulatina adoção de códigos Linux de compatibilidade e mesmo o desenvolvimento e adoção dos kernels WSL e WSL2 (Windows Subsystem for Linux), que permitem que desenvolvedores rodem um sistema Gnu/Linux completo no Windows (WSL2), mas sem interface gráfica, a partir de um kernel Linux derivado de sua última versão estável e desenvolvido pela Micrososft, sem a necessidade de dual boot ou máquinas virtuais, parecem indicar, e isso é mera suposição da comunidade software livre, que ela está prestes a guinar para a adoção do kernel Linux sob o capô do Windows.

Para ela seria um golpe de mestre, pois resolveria as inúmeras falhas de seu sistema operacional, ao mesmo tempo em que desafogaria seus desenvolvedores, que têm que carregar esse piano de cauda sozinhos nas costas. Ela poderia manter o mesmo look and feel do sistema Windows, rodando um motor leve, seguro e eficiente, desenvolvido por milhares de programadores ao redor do mundo. De fato, a Micrososft, a exemplo do que faz a IBM, também contribui com o desenvolvimento do kernel Linux.

Só o tempo dirá.